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    17 de dez. de 2003

    Contos da txt magazine - parte II

    Classes Diferentes, de Homera Cristalli

    A primeira coisa que a menina fez ao chegar em Berlim foi procurar uma loja de discos e comprar o "A Different Class" do Pulp. Até dava para encontrar o álbum no Brasil, mas era muito mais caro e ali, a milhares que quilômetros de distância, havia um motivo maior que o seu gosto musical para comprar aquele disco. Ela colocou para tocar no discman e saiu a caminhar por aquelas ruas que ainda não lhe eram familiares. Seu namorado possuía aquele disco. Haviam combinado de sempre pensar um no outro quando o escutassem, até que ele se formasse e pudesse ir morar com ela na Europa.

    Em Porto Alegre, um Audi preto saía da garagem do edifício onde seu dono morava. Ao cruzar o portão, o volante escorregou entre as mãos suadas do motorista e a porta do lado do carona roçou no ferro, arranhando levemente a pintura. O motorista não se importou e acelerou, ganhando as ruas sem olhar para trás. Estava sozinho no automóvel, no seu colo estava pousado um envelope.

    Solange mergulhou o dedo no copo de uísque e fez as pedrinhas de gelo girarem no sentido horário. Sentia que se levantasse da poltrona deixaria a marca de seu corpo no estofado, uma silhueta mais clara, ou talvez mais escura, sobre o veludo bordô já manchado pelo tempo e a falta de cuidados. Estava lá há tanto tempo, com a garrafa a seu lado, que parara de contar as horas antes mesmo de escurecer. Não havia porquê, se ela não esperava por ninguém e ninguém a esperava em lugar algum.

    Solange juntou suas forças e levantou. Foi até a mesinha ao lado da tv e olhou para a foto emoldurada da filha. "A cara daquele desgraçado" pensou. Depois de vinte e cinco anos, ainda não perdoara aquele homem que a engravidara. "Tu me deixou sem nada, filho da puta", murmurou enrolando a língua. "Só a Vitória tu me deu... pena que o resto da minha vida foi uma derrota". Solange riu da própria piada e deixou-se cair no chão. Encostou a coluna na parede e fechou os olhos. Tocou na própria perna, por baixo do vestido de jérsei, e lembrou de um dia de sol, há mais de vinte anos, quando o desgraçado a levara para passar um dia na praia. Não a praia onde ele passava férias, claro, pois lá poderiam encontrar alguém conhecido dele ou da sua noiva, e pegaria mal. Afinal ele ainda não contara à moça que iria terminar o noivado para ficar com Solange. Nem contaria nunca, mas isso Solange ainda não sabia. Passaram o dia em um balneário freqüentado pela classe média-baixa, mas estavam tão apaixonados que deitaram na areia e mergulharam no mar como se estivessem na mais bela das ilhas do Caribe.

    O Audi preto atravessava a avenida em velocidade muito acima do permitido, e o motorista não viu o rapaz. Seus olhos estavam embaçados. Mas ele sentiu quando o corpo se chocou contra a frente do automóvel e pôde até ouvir o som dos ossos se quebrando. Os olhos embaçados perceberam o sangue sobre o vidro dianteiro. O motorista baixou a cabeça e encostou-a no volante. Corria para tirar a própria vida, não a de outros. Uma pequena multidão começava a se aglomerar em volta do Audi, batiam no vidro e gritavam. O homem finalmente desceu do carro, segurando o envelope onde dizia "Para Solange e Vitória". Dentro havia um cheque, uma forma tardia de compensação. O rapaz que morrera não ouvira o carro se aproximar porque estava usando fones de ouvido, no seu discman. Se alguém tivesse se preocupado em ver qual disco estava dentro do aparelho, veria que era "A Different Class", do Pulp.

    Solange tornou a olhar para o retrato emoldurado e pensou mais uma vez na filha, tão parecida com o pai. Ela estava tão longe agora, na Alemanha. Esperando o namorado terminar a faculdade e ir juntar-se a ela. Solange encheu mais um copo com uísque e deitou no sofá, tentando trazer de volta o cheiro daquele dia de sol em que ela e seu amor haviam deitado na areia, tomado sorvete e dividido um copo de cerveja, olhando juntos para o mar poluído do litoral gaúcho.

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