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    12 de nov. de 2003

    Contos da txt magazine - parte I

    Minha viagem a Londrina fez-me lembrar de um conto escrito por um estudante de jornalismo de lá (Fernando Terra). Ele foi publicado na finada txt magazine, revista eletrônica do André Takeda, onde eram publicados alguns contos bem bacanas, de gente como a gente. Pretendo ir colocando aqui aqueles que me chamaram a atenção (e que consegui samplear, claro). Comecemos por esse:


    O trágico, por Fernando Terra

    Andava circulando entre Praga, Itabira e Liverpool por aqueles dias de verão. Tomara há pouco um soco na cara. E ria, por se saber forte por saber rir de qualquer desgraça da vida, que não a morte, essa, irreversível. Talvez, se já tivesse lidado com ela, até se arriscasse com a "indesejada das gentes". Enfim, era feliz por se saber trágico: aquele que, mesmo experimentando todas as dores do mundo, jamais perde a alegria de viver; aquele que afirma incondicionalmente a existência, e por esta razão, sabe ser grande tanto na alegria quanto na tristeza. É, pelo menos para isso as aulas de filosofia na faculdade serviam. Ele que não ligava a mínima para economia, política ou filosofia séria, existencialista. Sabia apenas das paixões: meninas pedindo proteção ou times de futebol em decisões.

    Temia algumas das já citadas infelicidades, é verdade. Riu-se todo com a amiga ao ver um coral de surdos dublando uma canção natalina na escadaria de uma biblioteca. Depois, penitenciou-se, com medo de que os filhos pudessem nascer com tal deficiência, como às vezes precavia sua avó. Mas esse tipo de assistencialismo natalino às vezes beirava o ridículo: que pusessem os surdo-mudos para jogar bola, mas não para cantar.

    Mas seguiam pelas ruas: ele, o soco na cara e um fim de relacionamento, procurando qualquer beleza disfarçada entre Itabira, Praga ou Liverpool. Ah sim, repousando esporadicamente em Turim. Sentia falta da avó nesses dias. Se conversasse abertamente com ela na ocasião, a respeito de toda tragicomédia em que sua vida se transformara, a velha encaminhá-lo-ia o para uma benzedeira.

    Buscava a beleza não convencional de suas risíveis tragédias: às vezes até se convencia de que o soco não doera tanto. Olha só, nem inchado ficou...

    Tentava se convencer também de que Júlia não era tão perfeita assim: afinal, ela, ela... bem, ela dividia uma cama de casal com a irmã gêmea, ela não tinha o maior senso de humor do mundo, ela... ah, com certeza ela seria frígida.

    Mas ela falava baixinho e cantado; sorria para ele ao final de cada beijo, como se agradecesse; agia como se tivesse quinze anos; encantava; era linda, como a irmã gêmea.

    Um dia ele a convidou para comer pizza lá em casa e ela disse que não: -Eu? Na sua casa? Ahhh...

    Então, eles não saíram mais para dançar. Fez calor no apartamento dela. Ele gravou uma fita com músicas que remetiam a ela e não quis entregá-la. Ela serviu bolo de fubá e canela com suco de uva. Ele trouxe um coração cheio de balas Chita. Ela teve sono muito cedo e viajou sem ele. Trocaram cartões de Natal. Ela teve medo e colocou seus óculos escuros. Ele se esqueceu de que quanto maior o coqueiro, maior a queda. Ela pegou o livro para estudar espanhol. Ele tomou o Sentimento do Mundo e A Insustentável Leveza do Ser. Ela ouvia qualquer coisa na FM enquanto ele cantarolava If I Fell. (Um dia desses, George morreu e ele recitou um verso dele: attracts me like no other lover. Ela nem ligou.) Ele ofereceu vinho, e ela insistiu no suco de uvas. Claro, artificial, com adoçante.

    No outro dia, ela negou-lhe a boca e ofereceu-lhe a face. A desgraça estava feita. Ele perguntou se era medo, e disse mais: disse que ela era insegura e que não confiava nele e nem nela mesmo. Ele queria a intensidade, ela não. Ele segurou-se para não acusá-la de medíocre. Ela afirmou que não sabia mais o que sentia. Ele inventou em 372 cartas de despedidas, 482 argumentos para eles estarem juntos agora. Ela não se convenceu. Ela tentou explicar, e ele apenas afirmou que essas coisas aconteciam. Ele passou então a enumerar motivos para justificar o fim. Nunca se falou tanto da boca para fora. Ela não quis magoá-lo. Ele finalmente deu a ela sua coleção de músicas numa fita. Ela confessou que ele lhe cortava o coração. Ele teve vergonha de confessar sua fidelidade. Ela nem quis saber.

    Por aqueles dias, ele saiu, embebedou-se, beijou na boca uma amiga e na volta pra casa tomou o tal soco, totalmente grátis, na cara: caiu sobre o braço, fraturando sei-lá-que osso. Entrou pelo apartamento rindo à toa: tomara uma pancada não sei porquê, beijara uma moça não sei porquê, ria não sei do quê. Colocou sobre o pulso um saco de gelo e adormeceu. Amanheceu às 8 da manhã berrando de dor, sozinho no apartamento. É que só naquela hora o efeito do álcool passara, e a mão não doía, latejava.

    Só voltou a rir dias depois, e deu a ela um livro do Nietzsche que dizia que todas as dores, sofrimentos e inquietações deverão ser afirmadas incondicionalmente e de uma vez por todas. Afinal, no grande teatro da existência, sempre deve existir um motivo para se estar alegre.

    Eu acho que ela não entendeu nada. Ou nem prestou atenção.

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